terça-feira, 27 de abril de 2010

A Maior Epopeia Ainda Está Por Ser Escrita

As discussões sobre o Homero histórico sempre me pareceram de uma bobagem monumental. Tampouco os embates filológicos que envolvem a Divina Comédia enquanto consolidadora do italiano são pertinentes. Muito menos a viagem de Vasco da Gama deve merecer muita atenção. A maior epopeia ainda está por ser escrita.

Porque, vejam vocês, são apenas histórias de homens e povos que tentaram salvaguardar a honra, a alma, e a glória—motivos absolutamente dispensáveis. Outra crítica a ser feita é a extrema imaginação dos poetas, o que não me agrada—eu que sou aguerrido aos fatos bem documentados.


A epopeia que ainda não foi escrita, obviamente, é protagonizada pelo bardo tijucano, o Pã do Maracanã, Luiz Antonio Simas. Não quero, evidentemente, adiantar o enredo, mas é preciso deixar certas indicações para o homem de letras que realizará a maior epopeia de todos os tempos.

Muitos meses depois, diante do paredão de fuzilamento, Luis Antonio Simas haveria de lembrar-se daquela noite remota em que sentiu as água do rio Maracanã fria como o gelo. Tudo começa, aliás, nessas margens, onde Luiz Antônio divaga sobre a finitude da existência, ao som de Silas de Oliveira. Eis que de repente, três ninfas do rio, lhe aparecem, seminuas. São pombagiras aquáticas, prostitutas que se encantaram tragadas pelo rio, em noite de enchente. Vejam vocês que alguns maledicentes podem tentar equiparar o início da saga à primeira parte da Tetralogia de Wagner. Nada mais equivocado: todos sabem que o Reno é pálida reprodução do Maracanã arquetípico. Volto, pois, à narrativa.


A partir daí, começaram suas andanças: chega, à noite, ao estoque da loja Cantinho da Vovó Catarina, no Mercadão de Madureira. É lá que procura, com auxílio dos poucos fósforos de que dispõe, por baixo de quinze quilos de fundanga pura, a navalha que pertenceu ao próprio Zé Pelintra.

Não é do meu interesse esmiuçar a história da navalha. Apenas sugiro ao homem de letras que realizará a maior epopeia que está por ser escrita, que faça um pequeno apêndice, coisa pequena, nada muito maior que o Mahabharata, para explicar ao leitor o translado de José Pelintra, lá do sertão, em direção ao Rio de Janeiro. É preciso, e sugiro por puro preciosismo, também narrar a própria história da navalha, que envolveu figuras rigorosamente históricas como Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, Hilária Batista de Almeida e Filinto Strubing Müller. Para efeito didático, sugiro que tal apêndice seja voltado ao público infanto-juvenil, em formato de musical.

A partir daí, as aventuras de Simas se multiplicaram: aprendeu as artes mágicas com Mestre Jurarazinho, o sapo encantado, em Manacapuru; montou um touro negro na praia do Lençol, e quase pôs abaixo o Maranhão; recuperou o assentamento de Ossãe que pertencera ao pai-de-santo Abedé, perdido desde a sua morte, e o escondeu no meio da Floresta da Tijuca; aplicou o a Cabala nos versos de Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardo Nogueira sobre a grande seca de 1877 e, assim, encontrou a chave que faltava para compreender as profecias de Nostradamus; cotejou uma publicação apócrifa de Sun Tzu com o esoterismo pitagórico, e compreendeu porque, pelo alinhamento dos astros e a disposição geométrica de seus cabras, Lampião jamais poderia tomar Mossoró em 1927; elaborou o soneto “ Do chá de boldo”, sobre o qual o Instituto de Letras da Sorbonne, em nota oficial, afirmou ser “ supérieure à toute l'oeuvre de Verlaine”; foi a Cuba, onde escapou da morte certa diante do pelotão de fuzilamento; provocou furdunço no Congresso Mundial de Metereologia ao defender a realização de um padê internacional para aquietar o “El Niño”; explicitou, em aula magna na Universidade de Atenas, paralelos insofismáveis entre Helena de Tróia e a viúva Porcina; foi visto, no Carnaval de 96, ao mesmo tempo no Rio de Janeiro, e em Mogi das Cruzes, provocando investigações austeras por parte do Vaticano; desenvolveu, apoiado em sólidos princípios pedagógicos, uma série de cartilhas de alfabetização tematizando a vida de Febrôncio Índio do Brasil ; rearticulou o Rito Escocês, instituindo no 34º grau a titulação de “ Caboclo Quimbandeiro”; e muito mais.

Espero que, ainda em vida, veja em decassílabos heroicos, erguer-se o louvor a esse brasileiro maior. Da minha parte, já que me falta engenho e arte para a empreitada, vou armazenando todos os documentos, e os coloco à disposição do artista que se aventure na perigosa trilha da imortalidade.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Dia de Jorge

Quando os fogos de artifício explodiram a alvorada, pensei em escrever sobre a saga de Jorge.

Falaria sobre o príncipe da Capadócia que, durante o governo de Diocleciano, proclamou sua fé no Cristo, foi preso e torturado; narraria os terríveis castigos que sofreu, calçando botas de ferro incandescente, enterrado sob cal viva, e como, apesar de tudo isso, ele continuava vivo, pela graça de Deus; escreveria como Jorge ressuscitou um homem, diante de um povo estupefato; contaria como o santo foi finalmente decapitado no dia 23 de Abril de 303 a.C.; talvez comentasse sobre a aparição do guerreiro, 795 anos depois de sua morte, vindo das montanhas, montado em um cavalo branco, para derrotar a ofensiva turca contra os cruzados em Antioquia; certamente lembraria de como, na Idade Média, São Jorge salvou uma indefesa donzela de uma morte certa, cravando sua espada sob as asas do terrível dragão; não poderia esquecer—caso fosse escrever o texto—de citar a decisiva participação do santo, já sincretizado com Ogum, na batalha do Humaitá, na guerra do Paraguai; falaria da grande injustiça cometida pelo papa Paulo VI, que rebaixou São Jorge, e tornou suas festas opcionais dentro do calendário litúrgico; citaria também os poderes de um povo que uniu um santo da Capadócia com o orixá de Irê.



Crédito: Luisa Nolasco
                                ( Festa de São Jorge- Niterói)

Mas não foi isso que ocorreu, porque um evento, pela manhã, mudou meus planos. Circundava de carro a lagoa Rodrigo de Freitas, dirigindo-me para a Igreja do santo. Meu telefone tocou; atendi. Falava com uma amiga, quando uma motocicleta da PM me abordou; encostei.


Mostrei os documentos; tudo em ordem. Falar ao celular enquanto dirige dá multa—disso eu sabia. O cabo Antunes olhou para minha blusa vermelha, sorriu e perguntou:

- Você está indo para...

- A Igreja de São Jorge—atalhei.

O homem da lei, então, aproximou a boca ao meu ouvido:

- Amigo, vai na fé. Não se esquece de pedir por mim...

Segui sem multa. Irmanei-me ao povo que se espalhava ao redor do templo. O padre, finda a missa, aspergia água benta e abençoava chaves de carro, medalhas, imagens de gesso, fotografias, colares de Umbanda e fitas vermelhas.

Atravessando com dificuldade a massa de faxineiras, advogados, bicheiros, médicos, escriturários, sambistas, vagabundos, estudantes, e policiais, acerquei-me da imagem do santo. Depositei aos seus pés, entre a lança e o dragão, duas palmas vermelhas. Uma por mim; a outra pelo cabo Antunes.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

sábado, 17 de abril de 2010

A Verdade sobre as Relações Internacionais

Escolher a profissão é muito difícil. Dia desses uma aluna me explicava que havia decidido cursar Engenharia do Petróleo porque o negócio dava muito dinheiro. A lógica, vejam vocês, é definir o futuro com base no mercado.

Outro curso que tem angariado cada vez mais adeptos é o de Relações Internacionais. O troço, por conseqüência, tem atraído minha atenção. Dei uma olhada na grade curricular da graduação, e, confesso, fiquei muito entusiasmado. O aluno é submetido a aulas como “Problemas da Guerra e da Paz”, “ Aventura Sociológica”—este é exatamente o título da disciplina—, e “ Análise de Política Externa”.

A última matéria foi a que mais me fascinou. Por isso, fui dar uma olhada na ementa. Eis o que a PUC-RJ apresenta:

Revolução Behaviorista e surgimento da sub-área de análise de política externa. Teorias e pré-teorias de política externa. Processo decisório. Modelo racional. Modelo organizacional. Modelo de política burocrática. Jogos de dois níveis. Análise cognitiva. Regimes políticos e conteúdo de política externa. Situações de crise. Atores transnacionais e política externa.

Não posso descrever, meus amigos, a minha decepção. Nada sei sobre ‘jogos de dois níveis’, muito menos sobre a ‘revolução behaviorista’, mas de uma coisa tenho certeza: são meros apêndices, notas de rodapé, no que deveria ser um verdadeiro curso de Relações Internacionais para estudantes brasileiros. Suprirei, portanto, a imperdoável lacuna. Acompanhem-me.

Todo diplomata deveria saber que a política externa brasileira não se faz nos grandes salões, nos portentosos palácios, com gente engravatada. Toda a nossa política internacional vem sendo conduzida, desde o grito da Independência, pelos anônimos macumbeiros deste país. Eis a verdade.

Na chapada diamantina, por exemplo, logo ao fim da guerra, um médium durante uma sessão de Jarê—uma mistura de Umbanda e Candomblé—estremeceu subitamente e incorporou uma entidade. O espírito, vindo lá de Aruanda, deu seu nome : Caboclo Italiano.

Italiano não une com inglês
Ele não une com Japão...
Italiano só acredita
Naquilo quem tem na mão!

Tal exemplo de reconciliação não encontra paralelo na história oficial das Relações Internacionais. No entanto, na história dos terreiros brasileiros, outro grande exemplo de diplomacia metafísica é o registro da primeira incorporação, em 1948, do Caboclo Guerreiro da Alemanha, falangeiro de Ogum:

Guerreiro da Alemanha
Quem é? Quem é?
É seu Ogum Dilê
Confirmando a sua fé...

Eis, senhores, uma verdadeira Liga das Nações a unir iorubás, alemães, brasileiros e italianos. Conta-se—e não posso confirmar a história—que o Caboclo Italiano teria psicografado, na língua de Dante, um poema com tercetos hendecassílabos, com rimas no esquema ABA, BCB, CDC, VZV, Z, e o encaminhou a Nelson Mandela, o que teria, dizem, inspirado o presidente a conduzir uma reconciliação pacífica no pós-apartheid.

Outro grande exemplo é a incorporação, nos terreiros do Maranhão, todos os anos, de grandes expoentes da História como Dom Luis de França, Marquês de Pombal, Os doze pares de França, A família real da Turquia, Dom João, e Rei Sebastião—volto a falar do assunto em breve. Há, percebam, um diálogo diplomático que vai além das fronteiras do internacional, e toca o profundo sobrenatural.

Nos candomblés de caboclo de Salvador, também há registros da incorporação de boiadeiros estrangeiros:

Boa-Noite pra quem é de boa-noite
Bom-dia pra quem é de bom-dia
A benção, meu tatá, a benção,
Seu boiadeiro é rei lá na Hungria!

Por aí percebemos como a o curso de R.I. está absolutamente fora da realidade. Feliz o dia em que os senhores reitores atentarem para o absurdo que está sendo perpetrado nas cátedras deste país; feliz o dia em que a profissão seja apenas sopro dos encantos.
 
 
 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Mario de Andrade, Modernismo e o Mestre Menino

                                      “Você condena o que a moçada anda fazendo
e não aceita o teatro de revista
arte moderna pra você não vale nada
e até vedete você diz não ser artista”


Não sou dado a exageros. Por isso, não chego a concordar integralmente com o Falso Moralista da música de Nelson Sargento. Não falo sobre o Teatro de Revista, que isso é sesmaria do historiador (e grande aficionado em Artes Cênicas) Luiz Antônio Simas—apesar de Luiz Antônio ter preferência pelas produções contemporâneas.

O que eu queria mesmo era falar sobre o ensino do Modernismo nas salas de aula—tema, aliás, recorrente em vestibulares. Os alunos ficam preocupados em aprender sobre a Semana de 22, sobre os acontecimentos políticos da época, sobre a revista Klaxon, e chegam até a decorar uns poemas. O pior é que o fundamental, nessa confusão toda, acaba sendo esquecido. E digo mais: se o Brasil fosse um país sério, todas as bancas de Vestibular deveriam abrir suas provas com a seguinte questão: “ Quem mais contribuiu com o Modernismo brasileiro?”

Os jovens que respondessem Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Virginia Lane, Tarsila do Amaral, Filinto Müller, etc,etc, receberiam um zero retumbante. O mais importante elemento no modernismo brasileiro foi, sem sombra de dúvida, Mestre Carlos da Jurema. Acompanhem-me.

Mario de Andrade chegou à cidade de Natal para conhecer melhor os costumes da terra. E foi na periferia da cidade, mais especificamente na casa de dona Plastina, que o poeta paulista conheceu dois catimbozeiros. Para quem não sabe, o Catimbó é uma prática religiosa nordestina fruto da associação dos rituais indígenas tapuias com o catolicismo popular. Nesses rituais, bebe-se um preparado mágico a base de Jurema, planta da família das leguminosas. A Jurema tem poderes mágicos, e é capaz de expandir a consciência do indivíduo. O Catimbó cultua seus mestres, entidades que incorporam nos juremeiros para aconselhar e curar o povo do Nordeste. Essas entidades costumam fumar o cachimbo ao contrário: colocam o fornilho dentro da boca e assopram a fumaça pela piteira. Assim, fazem e desfazem qualquer coisa.

Nosso poeta foi convidado a participar de uma cerimônia de fechamento de corpo. Os catimbozeiros começaram seus cânticos de invocação aos mestres:


Abre-te, mesa celeste
Abre-te portão riá
Abre-te, curtina nobre,
Cidade de Jurema!

Nesse instante, o negócio pegou fogo: baixou mestre Xaramundi. Portentoso cacique amazônico, a entidade é conhecida pelo seu poder de limpar a matéria impura. Xaramundi, aproximando-se, cheirou as pontas dos dedos do poeta e fez uma monumental careta de nojo. Para purificar o corpo de Mario de Andrade, o cacique começou a desferir bofetadas no rosto do catimbozeiro cujo corpo estava possuindo. Xaramundi batia em um para purificar o outro. O cacique não economizava nas trauletadas, mais impactantes que as caneladas de Júnior Baiano. Vinte e um tabefes depois, Xaramundi tornou a cheirar os dedos de Mario. Outra vez, a monumental cara de nojo. O portentoso cacique decidiu ir embora.

Mal a situação se reestabeleceu, outra entidade baixou, dessa vez o afamado Rei Eron. Mas esse mestre também não aceitou o encargo de fechar o corpo de Mario de Andrade. Outras entidades foram baixando nos catimbozeiros: Manicoré, mestra Angélica, e Felipe Camarão. Ninguém aceitou a tarefa.

Quando já não havia mais esperança, desceu o mestre Carlos da Jurema. Conta-se que Carlos era filho de um famoso catimbozeiro. Um dia, quando contava 12 anos, Carlos tentou abrir sozinho, escondido na mata, uma sessão de Catimbó: como não havia sido iniciado, caiu duro, fulminado, do lado de um pé de jurema. Seu pai, o grande catimbozeiro, saiu a procurar o filho, e, junto aos vizinhos, vasculhou tudo durante três dias e três noites. Desesperado, resolveu abrir uma mesa de catimbó para buscar resposta junto às entidades. Bebeu da Jurema e seu corpo estremeceu levemente:


Mestre Carlos é bom mestre
Que aprendeu sem se ensinar
Três dias levou caído
Nos pés do Juremá
Quando se alevantou
Foi pronto pra trabalhar!


Era mestre Carlos que chegava. Foi ele que realizou o ritual adequado e selou o corpo de Mario de Andrade contra os males do fogo, do céu, da terra, e do mar. Por isso, mestre Carlos foi o elemento mais importante do Modernismo nacional—gabarito indiscutível. E quem viu sabe: todos os poemas do mundo não dão a poesia da fumaça do mestre menino.

domingo, 11 de abril de 2010

Alumbramentos

Ao Filipe Couto.




Não fui um adolescente dos mais pacatos. Cedo descobri que, para o filho da classe média, boas notas garantem a paz necessária para se edificar o caos. Por isso, às vésperas das provas, aprendia a matéria, garantia o próximo ano, e o salvo conduto para viver como adolescente quizumbeiro.

Lembro-me que, certa feita, em sala de aula, um professor organizara a turma em grupos de cinco pessoas. Era um trabalho sobre Esaú e Jacó, obra de Machado de Assis. Uma necessidade maior me chamava: sorrateiramente me apoderei da lixeira da sala, e passei a batucar um partido de Jovelina. Fui me empolgando, recebi adesão dos meus colegas de grupo, e o tom acabou ficando imprudente demais:

“ Pra revelar a vida em alto astral...Lá laiá laiá laiá Laiá...”


Quando o coro atingia um Lá Maior, ouvi meu nome, em tom grave, acho que em Ré menor. O mestre me olhava com uma serenidade preocupante. Todo os meus colegas meteram as caras no livro.

Pensei em alegar que, num ímpeto religioso, arremessara a obra de Machado no lixo, por não tolerar apropriações profanas de temas bíblicos. Desisti do intento.

Fui à mesa do mestre. Ele pediu que eu puxasse uma cadeira. Sentei-me ao seu lado. Ele tirou da pasta—sim, senhores, ele andava com uma pasta—um livro. Escancarou a página 173. E ali recebi, no saco, na nuca, no estômago, o coice da poesia.


Você é mais bonita que uma bola de papel prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
Límpida
Num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
Que um filhote de onça
Que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
Em frente ao mar de Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
De noite
Mais bonita que a Ursula Andress
Que o Palácio da Alvorada
Mais bonita que a alvorada
Que o mar azul-safira da República Dominicana

Olha,
você é tão bela quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana.


Anos depois, tornei-me professor. E quando saio para trabalhar toda manhã, quando vejo um moleque tocando furdunço, sinto o mesmo coice. Aí, então, lembro sempre de Jovelina, do Gullar, e daquele mestre, todos guerrilheiros do alumbramento.

A primeira crônica




“E Deus abençoou o 7º dia e santificou-o, porque nele cessou toda Sua obra, que Deus criara para fazer.” Eis o terceiro verso do segundo capítulo de Gênesis. Os sábios judeus, no Midrash, explicam que o verbo fazer está propositalmente colocado sem complemento, afinal de contas, a criação não foi um ponto isolado na história. O mundo está sendo recriado a cada momento, e caberia ao homem aperfeiçoá-lo.

E era nisso que eu pensava quando atravessava a rua das Laranjeiras, em uma noite de Domingo. Entrei em uma padaria e, cercado pelas prateleiras de biscoitos, fui ajuntando meu jantar. Naquele tempo, havia explodido o meu velho mundo, e os cacos do passado me navalhavam o peito. Por isso, pensava no verso bíblico.

Por um daqueles sincretismos que já andam nas veias do Brasil, minha língua foi desfiando baixinho uma cantiga que escutara na infância:


Ô filá laêo irê ilê auá
Ê babá áureo irê lêuá
Ô filá laêo irê ilê auá
Ê babá áureo irê lêuá


O ponto ancestral é uma cantiga de Oxalá, o grande orixá. A mitologia iorubá conta que Oxalá criou o mundo, e, com o barro de Nanã, modelou o ser humano. Em respeito ao Velho Orixá, pinta-se com giz branco o corpo dos iniciados no candomblé: porque o mundo (e os homens) se reconstroem a cada momento.


E foi de repente, num barravento, que senti uma sombra ao meu lado. Larguei o pacote de biscoitos, e olhei. Não lembro absolutamente nada da fisionomia da moça, mas sei que foi a mulher mais bonita que jamais se viu. Ela sorriu, e me abraçou. Eu me deixei ir, naufragando em um abismo de não-ser.

Sem dizer palavra, tocou o pingente de prata que trazia ao pescoço. Entendi o sinal: aproximei o rosto do fino cordão e vi um pequeno opaxorô. Para os que não sabem, o opaxorô é o bastão de Oxalá, que suporta o velho orixá em suas andanças pelo mundo, que faz jorrar o vinho da palmeira, que dá vida onde há o nada, que simboliza todo o universo.

Depois, não me lembro de mais nada. Foi minha amiga Amanda, a encantadora filha de Oxum, quem me guiou pelo braço, trôpego e atordoado, pra cruzar o mar das Laranjeiras. Porque ali, senhores, eu vi o universo renascer, cegueira de mil sóis janela adentro, e, como criança, à vida só pude dizer sim.

É assim que eu queria minha primeira crônica: que fosse pura como aquele abraço.