domingo, 1 de agosto de 2010

Oxossi


Outra do Paulo César Pinheiro e Roque Ferreira.


Oxóssi, filho de Iemanjá
Divindade do clã de Ogum
É Ibualama, é Inlé
Que Oxum levou no rio
E nasceu Logunedé

Sua natureza é da lua
Na lua Oxóssi é Odé Odé, Odé, Odé, Odé
Rei de Keto, caboclo da mata Odé-Odé.
Quinta-feira é seu ossé
Axoxó, feijão preto, camarão e amendoim
Azul e verde, suas cores
Calça branca rendada
Saia curta estampada
Ojá e couraça prateada
Na mão ofá, iluquerê
Okê okê, okê arô, okê 

A jurema é a árvore sagrada
Okê arô, Oxóssi, okê okê
Na Bahia é São Jorge
No Rio, São Sebastião
Oxóssi é quem manda
Na banda do meu coração




Notas:
Ibualama e Inlé são qualidades ou tipos de Oxossi. O primeiro tem a sua vestimenta confeccionada com couro, já o segundo, dizem, mora nas águas.

Há um mito iorubá que narra como Oxum seduziu Oxossi e dessa união nasceu Logunedé, orixá que vive metade do ano na mata como seu pai e metade do ano nos rios como sua mãe.

Ossé é o ritual de limpeza e renovação da casa dos santos e dos respectivos assentamentos. No que diz respeito a Oxossi, a canção apresenta algumas das comidas ofertadas em seu ossé. O axoxó é elaborado a partir do milho cozido e do mel de cana de açúcar(melaço). Nos candomblés, o mel de abelha é tido como quizila do orixá. Na Umbanda, essa restrição não parece existir.

Ojá é uma espécie de turbante utilizado nas casas de santo. Ofá é um fetiche de metal que consiste em um arco e uma flecha unidos. O autor comete uma pequena incorreção quando aponta o iluquerê(iruquerê) como apetrecho de Oxossi. Na realidade, esse orixá utiliza o eruexim, chicote feito com o rabo de cavalo. O iruquerê, atributo de Oiá-Iansã, é feito com a cauda de búfalo e se presta a afastar os eguns.

A música associa Oxossi, o deus africano, com a tradição indígena da Jurema. Dessa ligação, surgirá diversos ritos afro-brasileiros como o candomblé de caboclo e a Umbanda.

Por fim, a música trata das associações populares estabelecidas entre o santo negro e os santos brancos. Na Bahia, Oxossi é sincretizado com São Jorge; No Rio de Janeiro, é sincretizado com São Sebastião.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Dois-Dois



Inicio uma série de postagens sobre a fértil relação entre a religiosidade popular e as músicas brasileiras. A de hoje foi composta por Paulo César Pinheiro e Roque Ferreira. Intitula-se "Samba de Dois-Dois", uma homenagem aos gêmeos encantados:








Esse samba é de dois
De dois, é de Dois-Dois
De dois, é de Dois-Dois
De dois, esse samba é de dois

Pra puxar carroça grande
É melhor um par de bois
Se juntar mulher com homem
Vai sair mais um depois
Mas quem vai com sede ao pote
Às vezes vem logo dois


É um berço pra dois filhos
Camisola de filó
É o dobro de trabalho
Desses pais eu tenho dó
Mas quando se tem gêmeos
Acho que é melhor
Que na roda da vida
Nenhum deles brinca só

Festa dos Ibejês
Dia dos Erês
Vem Dadá e Ogum
Doú chega com Neném
Tem beiju, quindim
Acaçá, coco, mel e xerém
Caruru, xinxim
Tem pipoca, abará e aberém

Quando eles vêm, eles vêm assim
É de Dois-Dois
Crispiano vem com Crispim
É de Dois- Dois
Onde vai um vai o seu irmão
É de dois em dois
Se vem Doum, também vem Romão
É de dois em dois
Dia de Cosme e Damião
É dia de louvar Dois-Dois!

terça-feira, 18 de maio de 2010

Cara de pau

                                                                     I

Ângelo Inácio era, quando vivo, repórter. E não é por que morreu que vai entregar os pontos. Por isso,  decidiu que, vez por outra, publicaria uns livros, por meio da psicografia. Do além, ele continua sua atividade jornalística. Que interessante, não é?

O médium que recebe as reportagens em forma de romance chama-se Robson Pinheiro. Mineiro, Terapeuta Holístico, Robson teve, no início da sua carreira vida espiritual, orientação kardecista. Hoje, suas obras tendem em uma direção mais ampla, o espiritualismo universalista, sem essas bobagens sectárias.

Vejam vocês: uma das reportagens do espírito Ângelo Inácio transformou-se no livro “Tambores de Angola”. O romance retrata uma casa umbandista e as suas entidades. Além de passagens de extremo lirismo ( “O sol se assemelhava a um deus guerreiro, lançando as suas chamas que aqueciam as moradas dos mortais, como dardos flamejantes que ameaçavam as vidas dos homens”), o autor nos dá valiosíssimos ensinamentos morais( “Por todo lugar onde há o sentimento religioso, manifestam-se pessoas inescrupulosas, que abusam da fé alheia.”). Que interessante, não é? Vão anotando.


A obra, é claro, fez bastante sucesso. Afinal de contas, é preciso desesperadamente justificar que a Umbanda não é coisa de pobre, e sim algo científico. É claro que nesse processo, tudo o que é de preto e de índio vai ficando pra escanteio. Em uma passagem do romance, a questão fica clara:



Quando o tal filho-de-santo desencarna, encontra-se prisioneiro dessas entidades que se manifestam como santos ou orixás; passa a ser presa deles nas regiões pantanosas do além-túmulo. Em processos difíceis de descrever, inicia-se um intercambio doentio de energias entre os dois e – posso lhe afirmar – se não fosse pelos caboclos e pretos velhos auxiliados pelos guardiões na tarefa abençoada de resgatar esses filhos, dificilmente os pobres se veriam livres da simbiose espiritual que lhes infelicita a existência deste lado da vida. Às vezes por anos ou séculos, mantêm-se prisioneiros nas garras de entidades perversas e atrasadas que quando encarnadas, alimentaram com o sangue de animais inocentes e outras exigências esdrúxulas de espíritos que deles se aproveitavam.”

Que interessante, não é?


                                                                                II



Outra obra de Robson Pinheiro chama-se “Aruanda”. Nesse romance, também psicografado, a cara de pau sensibilidade espiritual do autor está insuperável! Vejam vocês que em um dado momento do enredo, uma entidade espiritual explica ao defunto repórter Ângelo Inácio sobre o arquétipo dos orixás. Acompanhem:

“ o arquétipo de Ogum é o das pessoas enérgicas, às vezes briguentas e impulsivas. Perseguem seus objetivos sem se desencorajar facilmente; nos momentos difíceis, triunfam onde qualquer outro teria abandonado o combate e perdido toda a esperança. Os filhos de Ogum, como se costuma dizer, são indivíduos de humor mutável e transitam com naturalidade de furiosos acessos de raiva ao mais tranqüilo dos comportamentos. Finalmente, Ogum é o arquétipo das pessoas impetuosas e arrogantes, que tendem a melindrar os outros por uma certa falta de discrição, quando alguém lhes presta serviços. Francos e sinceros ao extremo, não pensam duas vezes antes de se expressar, mesmo sob o risco de ofenderem as pessoas com as quais se relacionam.”

Um orixá muito conhecido pelo Brasil afora é Iemanjá, representativo da polaridade feminina por excelência. As filhas de Iemanjá costumam ser voluntariosas, fortes, rigorosas, protetoras, altivas e, algumas vezes, impetuosas e arrogantes. Fazem-se respeitar e são justas, mas bastante formais. Têm o hábito de por à prova as amizades que lhe são devotadas, mas preocupam-se muito com os outros; são sérias e maternais.”
Abrindo o livro “Orixás” de Pierre Verger, assim define o arquétipo dos filhos de Ogum :



o arquétipo de Ogum é o das pessoas violentas, briguentas e impulsivas. Das pessoas que perseguem energicamente seus objetivos e não se desencorajam facilmente. Daquelas que nos momentos difíceis, triunfam onde qualquer outro teria abandonado o combate e perdido toda a esperança. Das que possuem humor mutável passando de furiosos acessos de raiva ao mais tranqüilo dos comportamentos. Finalmente, é o arquétipo das pessoas impetuosas e arrogantes, daquelas que arriscam a melindrar os outros por uma certa falta de discrição...”


Lydia Cabrera também escreveu sobre o arquétipo de Iemanjá. Vejam:

“ As filhas de Iemanjá costumam ser voluntariosas, fortes, rigorosas, protetoras, altivas e, algumas vezes, impetuosas e arrogantes. Fazem-se respeitar e são justas, mas bastante formais.Põem à prova as amizades que lhes são devotadas(...). Preocupam-se com os outros, são maternais e sérias(...).”


Lembra "Pierre Menard, autor do Quixote", aquele conto do Borges...Que interessante, não é?


                                                                              III


Fiquei muito triste. Não pude, por motivos profissionais, comparecer ao workshop que Robson Pinheiro ministrou no centro espírita Manoel Bento, em SP. O curso—agendado para os dias 1, 2, 15, 16, 29 de maio—versaria sobre “Metafísica, Desdobramento Induzido e Apometria”. O investimento é de R$ 450,00. Mas o preço compensa: no fim do curso, o aluno recebe gratuitamente uma foto kirlian. Que interessante, não é?

quarta-feira, 12 de maio de 2010

DNA, FEMINISMO E OS GAVIÃO-IKOLEN



Fiquei impressionadíssimo esses dias quando passei pela Avenida Brasil. O motivo: centenas de milhares de anúncios, multiplicados nos muros, postes e pontos de ônibus, ofereciam exames de DNA a preços populares. A rapaziada pode parcelar o troço em até 15 vezes, vejam vocês.


Aliás, esse negócio de exame de DNA tem provocado polêmica no mundo jurídico e alimentado matérias em revistas de celebridades. Eu, que nada entendo de leis, celebridades, e de código genético, só consigo lembrar os índios Gavião Ikolen.

Esses índios vivem, atualmente, na Área Indígena Lurdes, no Estado de Rondônia. Sua população gira em torno de 500 pessoas. Para eles, essa história de DNA não faz o menor sentido. Isso porque—eis a lógica cristalina!—uma criança pode ser filho de diversos pais.

Um filho é sempre produto de todas as relações sexuais que a mulher teve depois da última menstruação. Quando o moleque vai crescendo, a mãe vai logo ensinando, apontando o dedo para os quatro cantos da aldeia:

- Este é seu pai. Esse é seu pai. Aquele é seu pai...—E cada pai contribui um pouquinho: de um o rebento herda o nariz; do outro, a boca; de outro, as orelhas.


Além de um belo modelo de transmissão genética comunitário, nunca sequer imaginado por Platão, tenho cá pra mim que foram os Gavião-Ikolen que fizeram, de fato, triunfar a bandeira do feminismo, muito antes de Lily Braun, Betty Friedan e Marlene Mattos. Acompanhem-me.


Esses índios ensinam que ao abraçar uma moça é preciso ter muito cuidado: qualquer movimento mais afoito, mais brusco, é capaz de perturbar o seu ti, sua alma vital, a sua energia. Existe violência maior?

Quando os índios se casam, vão, na mesma noite, dormir na mesma rede. Mas isso não significa nada. É preciso deixar o amor crescer, explicam. O homem deve manter absoluto autocontrole, caso contrário será visto como uma criatura sem princípios, repudiado por toda a tribo. O casal dormirá abraçado todos os dias, até alinhar o ritmo de suas respirações. É preciso—ensinavam muito antes de Manuel Bandeira—deixar que os corpos se entendam.


Esse jogo pode durar meses, até anos. A mulher seguirá segredada até o dia em que sua alma, seu ti, não se deixar mais assustar. Porque, entre eles, a palavra final, a mão certeira, a recriação do mundo, depende unicamente da vontade dela.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Preconceito

As tensões entre Protestantes e o Povo de Santo, no Brasil, vem crescendo nos últimos anos. É sobre esse conflito que se debruçam os especialistas, enquanto parecem ignorar a faceta mais perversa da questão.


No dia 21 de Abril de 2010, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) promoveu o chamado “Dia D”, evento anual que congrega fiéis e simpatizantes em todo o Brasil. Segundo estimativas, três milhões de pessoas se reuniram no Rio de Janeiro, na enseada de Botafogo. O acontecimento—penso eu na minha inocência—merecia, por suas proporções, uma cobertura adequada por parte dos meios de comunicação.


O jornal O Globo exibiu, no dia seguinte, a seguinte manchete: “Caos no Rio de novo surpreende autoridades”. Logo abaixo, a foto de capa: uma fileira de ônibus parados no aterro do Flamengo. A reportagem anunciava: “ Duas semanas após o temporal que parou o RJ, a cidade viveu novo dia de caos(...)”. Abrindo o jornal, encontramos outra manchete: “ Caos Universal e autorizado”.

Nos dias seguintes, O Globo continuou a tratar do assunto, no mesmo tom. Na internet, centenas de mensagens indignadas de moradores da Zona Sul, esbravejando contra a manifestação religiosa.


Não se trata aqui de defender a IURD e as suas práticas. Eu, inclusive, repudio tal igreja pela sua inconsistência teológica e por partilhar da abominação que é a Teologia da Prosperidade. Mas devemos prezar pela honestidade intelectual.

Um telespectador, Ubiratan, falando ao vivo em um programa da Rede Record disse:

- Eles [O Globo] têm medo da força do povo evangélico.


Concordo integralmente com a opinião do rapaz. Engana-se quem acredita ser a perseguição das Organizações Globo contra a IURD mera disputa de mercado televisivo. Há algo maior em jogo. A questão gira em torno do preconceito da classe média—ávidos leitores do jornaleco—contra qualquer manifestação de religiosidade popular.

Podem tentar me refutar por meio de um exemplo: a cobertura positiva que as Organizações Marinho faz da festa de Iemanjá, na praia de Copacabana. Ou então, falarão da presença de temáticas afro-brasileiras nas novelas e minisséries globais.

Veremos, sem qualquer dificuldade, que as religiões de matriz africana, são sempre analisadas pelo viés do exótico, do folclórico, e assim, esvaziadas. Assimiladas pela cultura de massa, são trituradas até se tornarem uma sopa rala, perfeita para as gargantas sensíveis da classe média. Já não estamos mais falando de religião, mas de cultura popular—no mesmo patamar dos bailes funk, das escolas de samba—coisa que o povão gosta, vai entender.

Os evangélicos, menos propensos a essas apropriações mundanas, são diretamente taxados de ignorantes, terroristas radicais, ou então são apresentados como vítimas indefesas de pastores larápios, que surrupiam a décima parte de seu salário de fome [salário que a mesma classe média acha excessivo quando tem de pagar seus empregados].

Enquanto seguem divididos, crentes e macumbeiros ignoram que o inimigo é comum: o preconceito das velhas elites, e o medo que atravessa as estruturas de poder sempre que Deus vem, selvagem, dançando, ao som dos tambores, entre línguas de fogo, caminhar entre o povo.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Egungun


Uma amiga me convidou dia desses para passar as férias em Itaparica. Para convencer-me, enumerou todas as belezas do local, a mais que perfeita infra-estrutura de sua casa. Eu disse que não iria nem sob chicote. Jogando baixo, a moça enumerou as especialidades culinárias de sua tia-avó—e azeite de dendê, senhores, é o meu fraco. Ainda assim, disse que não iria. Para que não me acusem de ser anti-social, explico.
É em Itaparica que funcionam as principais casas brasileiras dedicadas ao culto de Egungun. Essa prática, apesar de intimamente ligada à religiosidade africana, não se confunde com o candomblé: enquanto este cultua as forças da natureza personificadas pelos Orixás, aquela cultua os ancestrais.



O Ilê Agboulá, ou terreiro das Amoreiras, e o Ilê Axipá, são exemplos de casas com tradição de culto aos Egungun. E o negócio é impressionante: em uma sala secreta, longe dos olhos curiosos, entoam-se rezas específicas sobre uma roupa especial, uma espécie de grande burca, que vai, misteriosamente, aumentando, aumentando, até chegar ao tamanho de um homem. A roupa, então, anda sozinha. De dentro dos panos, uma voz grave se faz anunciar. É um antepassado que veio do Orun para auxiliar e receber reverências dos vivos.
Homem reverencia o seu ancestral, protegido pelo ixan


Em seguida, os Egungun saem para o salão principal, sob os olhos do povo. Dançam, e transmitem recados aos vivos, seus descendentes. Durante todo o tempo, no entanto, são vigiados pelos iniciados no culto para que não toquem em ninguém. Dizem que ao tocar a roupa de um Egungun, toca-se a própria morte. As conseqüências, meus caros, não são difíceis de imaginar. É por isso que os iniciados, com seus ixans—varetas de amoreira ritualisticamente consagradas—afastam os Egungun das pessoas.


Muitas vezes, no entanto, é preciso movimentos enérgicos desses iniciados—os ojés—porque o Egungun se lança violentamente, no afã de comungar com os vivos. Nesses momentos, é pelo fino galho de amoreira que a morte é afastada. É por essas e outras que recusei o convite.


Ou talvez porque, no fundo, tenha a consciência de que esse jogo-ritual dos Egungun—a morte sempre perseguindo a vida— seja a teatralização mais substancial da realidade da nossa humana condição.

 
 
 

terça-feira, 27 de abril de 2010

A Maior Epopeia Ainda Está Por Ser Escrita

As discussões sobre o Homero histórico sempre me pareceram de uma bobagem monumental. Tampouco os embates filológicos que envolvem a Divina Comédia enquanto consolidadora do italiano são pertinentes. Muito menos a viagem de Vasco da Gama deve merecer muita atenção. A maior epopeia ainda está por ser escrita.

Porque, vejam vocês, são apenas histórias de homens e povos que tentaram salvaguardar a honra, a alma, e a glória—motivos absolutamente dispensáveis. Outra crítica a ser feita é a extrema imaginação dos poetas, o que não me agrada—eu que sou aguerrido aos fatos bem documentados.


A epopeia que ainda não foi escrita, obviamente, é protagonizada pelo bardo tijucano, o Pã do Maracanã, Luiz Antonio Simas. Não quero, evidentemente, adiantar o enredo, mas é preciso deixar certas indicações para o homem de letras que realizará a maior epopeia de todos os tempos.

Muitos meses depois, diante do paredão de fuzilamento, Luis Antonio Simas haveria de lembrar-se daquela noite remota em que sentiu as água do rio Maracanã fria como o gelo. Tudo começa, aliás, nessas margens, onde Luiz Antônio divaga sobre a finitude da existência, ao som de Silas de Oliveira. Eis que de repente, três ninfas do rio, lhe aparecem, seminuas. São pombagiras aquáticas, prostitutas que se encantaram tragadas pelo rio, em noite de enchente. Vejam vocês que alguns maledicentes podem tentar equiparar o início da saga à primeira parte da Tetralogia de Wagner. Nada mais equivocado: todos sabem que o Reno é pálida reprodução do Maracanã arquetípico. Volto, pois, à narrativa.


A partir daí, começaram suas andanças: chega, à noite, ao estoque da loja Cantinho da Vovó Catarina, no Mercadão de Madureira. É lá que procura, com auxílio dos poucos fósforos de que dispõe, por baixo de quinze quilos de fundanga pura, a navalha que pertenceu ao próprio Zé Pelintra.

Não é do meu interesse esmiuçar a história da navalha. Apenas sugiro ao homem de letras que realizará a maior epopeia que está por ser escrita, que faça um pequeno apêndice, coisa pequena, nada muito maior que o Mahabharata, para explicar ao leitor o translado de José Pelintra, lá do sertão, em direção ao Rio de Janeiro. É preciso, e sugiro por puro preciosismo, também narrar a própria história da navalha, que envolveu figuras rigorosamente históricas como Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, Hilária Batista de Almeida e Filinto Strubing Müller. Para efeito didático, sugiro que tal apêndice seja voltado ao público infanto-juvenil, em formato de musical.

A partir daí, as aventuras de Simas se multiplicaram: aprendeu as artes mágicas com Mestre Jurarazinho, o sapo encantado, em Manacapuru; montou um touro negro na praia do Lençol, e quase pôs abaixo o Maranhão; recuperou o assentamento de Ossãe que pertencera ao pai-de-santo Abedé, perdido desde a sua morte, e o escondeu no meio da Floresta da Tijuca; aplicou o a Cabala nos versos de Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardo Nogueira sobre a grande seca de 1877 e, assim, encontrou a chave que faltava para compreender as profecias de Nostradamus; cotejou uma publicação apócrifa de Sun Tzu com o esoterismo pitagórico, e compreendeu porque, pelo alinhamento dos astros e a disposição geométrica de seus cabras, Lampião jamais poderia tomar Mossoró em 1927; elaborou o soneto “ Do chá de boldo”, sobre o qual o Instituto de Letras da Sorbonne, em nota oficial, afirmou ser “ supérieure à toute l'oeuvre de Verlaine”; foi a Cuba, onde escapou da morte certa diante do pelotão de fuzilamento; provocou furdunço no Congresso Mundial de Metereologia ao defender a realização de um padê internacional para aquietar o “El Niño”; explicitou, em aula magna na Universidade de Atenas, paralelos insofismáveis entre Helena de Tróia e a viúva Porcina; foi visto, no Carnaval de 96, ao mesmo tempo no Rio de Janeiro, e em Mogi das Cruzes, provocando investigações austeras por parte do Vaticano; desenvolveu, apoiado em sólidos princípios pedagógicos, uma série de cartilhas de alfabetização tematizando a vida de Febrôncio Índio do Brasil ; rearticulou o Rito Escocês, instituindo no 34º grau a titulação de “ Caboclo Quimbandeiro”; e muito mais.

Espero que, ainda em vida, veja em decassílabos heroicos, erguer-se o louvor a esse brasileiro maior. Da minha parte, já que me falta engenho e arte para a empreitada, vou armazenando todos os documentos, e os coloco à disposição do artista que se aventure na perigosa trilha da imortalidade.