domingo, 11 de abril de 2010

Alumbramentos

Ao Filipe Couto.




Não fui um adolescente dos mais pacatos. Cedo descobri que, para o filho da classe média, boas notas garantem a paz necessária para se edificar o caos. Por isso, às vésperas das provas, aprendia a matéria, garantia o próximo ano, e o salvo conduto para viver como adolescente quizumbeiro.

Lembro-me que, certa feita, em sala de aula, um professor organizara a turma em grupos de cinco pessoas. Era um trabalho sobre Esaú e Jacó, obra de Machado de Assis. Uma necessidade maior me chamava: sorrateiramente me apoderei da lixeira da sala, e passei a batucar um partido de Jovelina. Fui me empolgando, recebi adesão dos meus colegas de grupo, e o tom acabou ficando imprudente demais:

“ Pra revelar a vida em alto astral...Lá laiá laiá laiá Laiá...”


Quando o coro atingia um Lá Maior, ouvi meu nome, em tom grave, acho que em Ré menor. O mestre me olhava com uma serenidade preocupante. Todo os meus colegas meteram as caras no livro.

Pensei em alegar que, num ímpeto religioso, arremessara a obra de Machado no lixo, por não tolerar apropriações profanas de temas bíblicos. Desisti do intento.

Fui à mesa do mestre. Ele pediu que eu puxasse uma cadeira. Sentei-me ao seu lado. Ele tirou da pasta—sim, senhores, ele andava com uma pasta—um livro. Escancarou a página 173. E ali recebi, no saco, na nuca, no estômago, o coice da poesia.


Você é mais bonita que uma bola de papel prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
Límpida
Num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
Que um filhote de onça
Que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
Em frente ao mar de Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
De noite
Mais bonita que a Ursula Andress
Que o Palácio da Alvorada
Mais bonita que a alvorada
Que o mar azul-safira da República Dominicana

Olha,
você é tão bela quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana.


Anos depois, tornei-me professor. E quando saio para trabalhar toda manhã, quando vejo um moleque tocando furdunço, sinto o mesmo coice. Aí, então, lembro sempre de Jovelina, do Gullar, e daquele mestre, todos guerrilheiros do alumbramento.

Nenhum comentário: