domingo, 11 de abril de 2010

A primeira crônica




“E Deus abençoou o 7º dia e santificou-o, porque nele cessou toda Sua obra, que Deus criara para fazer.” Eis o terceiro verso do segundo capítulo de Gênesis. Os sábios judeus, no Midrash, explicam que o verbo fazer está propositalmente colocado sem complemento, afinal de contas, a criação não foi um ponto isolado na história. O mundo está sendo recriado a cada momento, e caberia ao homem aperfeiçoá-lo.

E era nisso que eu pensava quando atravessava a rua das Laranjeiras, em uma noite de Domingo. Entrei em uma padaria e, cercado pelas prateleiras de biscoitos, fui ajuntando meu jantar. Naquele tempo, havia explodido o meu velho mundo, e os cacos do passado me navalhavam o peito. Por isso, pensava no verso bíblico.

Por um daqueles sincretismos que já andam nas veias do Brasil, minha língua foi desfiando baixinho uma cantiga que escutara na infância:


Ô filá laêo irê ilê auá
Ê babá áureo irê lêuá
Ô filá laêo irê ilê auá
Ê babá áureo irê lêuá


O ponto ancestral é uma cantiga de Oxalá, o grande orixá. A mitologia iorubá conta que Oxalá criou o mundo, e, com o barro de Nanã, modelou o ser humano. Em respeito ao Velho Orixá, pinta-se com giz branco o corpo dos iniciados no candomblé: porque o mundo (e os homens) se reconstroem a cada momento.


E foi de repente, num barravento, que senti uma sombra ao meu lado. Larguei o pacote de biscoitos, e olhei. Não lembro absolutamente nada da fisionomia da moça, mas sei que foi a mulher mais bonita que jamais se viu. Ela sorriu, e me abraçou. Eu me deixei ir, naufragando em um abismo de não-ser.

Sem dizer palavra, tocou o pingente de prata que trazia ao pescoço. Entendi o sinal: aproximei o rosto do fino cordão e vi um pequeno opaxorô. Para os que não sabem, o opaxorô é o bastão de Oxalá, que suporta o velho orixá em suas andanças pelo mundo, que faz jorrar o vinho da palmeira, que dá vida onde há o nada, que simboliza todo o universo.

Depois, não me lembro de mais nada. Foi minha amiga Amanda, a encantadora filha de Oxum, quem me guiou pelo braço, trôpego e atordoado, pra cruzar o mar das Laranjeiras. Porque ali, senhores, eu vi o universo renascer, cegueira de mil sóis janela adentro, e, como criança, à vida só pude dizer sim.

É assim que eu queria minha primeira crônica: que fosse pura como aquele abraço.



Um comentário: